#TBT: Guarda 1999


Guarda, Julho de 1999

Acho que é esta a data, mas já não estou certa. Deve ter sido pouco antes de me vir embora, quando me lembrei que tinha de trazer algumas lembranças. Não trouxe muitas, que nesse tempo as revelações fotográficas ficavam caras e eram de resultado incerto, além de que eu não queria andar a fazer figura de turista perto do trabalho. E ainda bem, porque a revelação, numa salsicharia de hipermercado, deixou-me as fotografias todas azuis. Felizmente, nada que o preto e branco não disfarce.
Quando cheguei à Guarda, em Novembro de 1997, tratei de ir ao posto de turismo, arranjar um mapa, pelo menos, para me orientar. Como já aqui contei, de início, "suportei três meses consecutivos de nevoeiro cinzento, chuva mole, vento cortante e frio glaciar". O nevoeiro, sobretudo, era insuportável. Lembro-me de uma prima da minha avó, já falecida, que, na sua juventude, passava frequentemente férias e temporadas na Guarda, para acalmar mazelas dos pulmões, no início; depois, porque se afeiçoou à cidade e às serras. Quando me encontrava, aos fins-de-semana, em Lisboa, perguntava-me sempre se não achava a Guarda linda, ao que eu respondia que não sabia, porque ainda não tinha conseguido ver nada. Literalmente, nada.
Passava os dias entre casa e trabalho, reduzindo o mais que podia a exposição às agruras do clima. Aos serões, entretinha-me a ler os folhetos turísticos, a imaginar passeios e a tentar perceber a expressão "imensa mole granítica" com que descreviam a Sé.
Uma manhã, cheguei ao trabalho, no meio da chuva miúda, do frio e do nevoeiro, a pé, como sempre, e descobri que os estudantes tinham escolhido o dia para se manifestarem, já nem sei contra o quê. O portão do Instituto estava fechado a cadeado, havia barulho, palavras de ordem, cartazes e pneus queimados. Antes que aparecessem os meios de comunicação, saí dali, sem saber para onde ir. Não me apetecia voltar para casa, pelo que decidi ir até ao centro da cidade. Tudo era cinzento, empapado numa tonalidade amarela estranha que os faróis dos automóveis espalhavam na humidade densa. Típico cenário de filme de terror. Fui andando, até que quase esbarrei com uma coisa enorme, escura, que se impunha por entre o nevoeiro -- uma imensa mole granítica. Estava aberta, entrei. Compreendi, nesse dia, a função que as igrejas também tinham, na Idade Média, de acolher e proteger. Não que eu andasse a fugir de inimigos e invasores sanguinários, mas soube-me bem ter onde descansar da chuva. Dentro, uma imensidão gótica, de paredes despojadas e húmidas, e um silêncio de paz.
Tempos depois, descia para o IPG, apressadamente, entretida com os meus pensamentos, quando, de repente, julguei que me tinha enganado no caminho: em vez do costumeiro caldo cinzento, serras a perder de vista, contra um céu azul de manhã clara. Estaquei, impressionada pela imponência da paisagem -- e não podia ainda imaginar como a haveria de ver, em Maio, coberta de maias, que, à luz do Sol poente, pareciam pintar as serranias de ouro.
Quanto à Sé, voltei mais vezes, para apreciar a cercadura de flor-de-lis de que os folhetos turísticos também falavam. Continuo a achá-la a catedral mais imponente que já vi em Portugal. Foi classificada como Monumento Nacional por decreto régio de 1907.

NOTA: A bem da precisão lexical, as maias da Guarda são as primeiras, das giestas; as de Portalegre são as outras (imagens daqui e daqui):



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