Lisboa - Lisbon - Lisbonne - Lissabon


Vista da Cerca Moura

Era um projecto que andava a germinar na minha cabeça há vários anos. Como muitos outros. Sou uma pessoa que gosta de fazer projectos. Não importa se algum dia os chego a realizar ou não, nem mesmo a sua exequibilidade: o prazer está todo na concepção mental.
De resto, quem é que se lembra de fazer turismo na cidade onde nasceu?
Não sou natural da freguesia de S. Sebastião da Pedreira, que o meu pai sempre achou que maternidades públicas com aspecto de aviário não eram sítios seguros para os filhos dele nascerem. Fui um bebé das avenidas novas, e uma criança suburbana, mesmo antes de saber o que isso era.
Lembro-me nitidamente do dia em que, na classe da Sra. D. Maria Amélia, um exercício de Meio Físico-Social nos pedia para caracterizarmos o local onde vivíamos. Numa pergunta de resposta múltipla, só nos eram dadas duas possibilidades: a cidade ou a aldeia. Os meus colegas, na generalidade filhos de operários migrantes, que "tinham terra", onde passavam religiosamente as férias de Verão, sabiam bem o que era uma aldeia; e todos nós, com Lisboa mesmo ao lado, sabíamos o que era uma cidade. Só não sabíamos o que chamar ao sítio onde morávamos. E a professora também não.


A Sé Catedral, por entre os fios do eléctrico

Lisboa foi a primeira cidade a sério que eu conheci. Tem tudo o que uma cidade precisa de ter: um centro histórico, uma periferia e subúrbios, zonas chiques e bairros degradados, património classificado pela UNESCO, monumentos e escritórios, um aeroporto, um porto, estações terminais rodoviárias, fluviais e ferroviárias, de onde se parte para o resto do país e do mundo, e onde, todas as manhãs, desaguam vagas de trabalhadores e estudantes, que partem ao final da tarde para destino anónimo, devolvendo à cidade o seu cheiro próprio. E autocarros, eléctricos e metro, cinemas e teatros, travestis e prostitutas, cafés, pastelarias e casas de chá, esplanadas e miradouros, lojas de bairro, supermercados e centros comerciais, carteiristas, pedintes e sem-abrigo, ministérios, editoras, jornais, galerias de arte, museus, igrejas, conventos, basílicas, uma mesquita e uma catedral, palácios barrocos e um castelo medieval. Restaurantes típicos e restaurantes chineses, japoneses, tailandeses, indianos, goeses, africanos, brasileiros, mexicanos, vegetarianos, e eu sei lá mais o quê. Hospitais, clínicas privadas, consultórios médicos, farmácias, centros de saúde, quartéis de bombeiros, agências bancárias, caixas Multibanco, oficinas de automóveis, cadeias de franchising, lares de 3ª idade, fontes, jardins, parques infantis, hotéis, pensões e um parque de campismo. Graffitis e pichamentos, bares, discotecas, jardins-de-infância, escolas e universidades, estádios de futebol, courts de ténis, campos de golfe, piscinas, uma praça de touros e um jardim zoológico. Migrantes e imigrantes, e uma variedade étnica e linguística impressionante. Ruas, becos, calçadas, travessas, pracetas, largos, praças, alamedas, avenidas, viadutos, vias rápidas, auto-estradas e pontes. Sete colinas, cerca de mil anos de história e, sobretudo, um rio. E não é um rio qualquer: é um estuário, um rio que se transmuta em mar sob os nossos olhos, todos os dias.


A Praça de Touros do Campo Pequeno, agora com um centro comercial por baixo

Nas minhas memórias habitam emoções em salas de cinema que já não existem, passeios no Parque Mayer, por entre cartazes iluminados, o teatro Monumental, a Feira Popular, com o Comboio Fantasma e o Poço da Morte, os gelados da Veneziana, os cheiros das tardes de Inverno, das castanhas assadas nos Restauradores e das torradas das pastelarias do Chile, a iluminação de Natal na Avenida da Liberdade, as casas de bonecas na loja de brinquedos que havia na esquina do Hotel Avenida Palace, mesmo à saída da Estação do Rossio, o jogo das escondidas por entre as pernas dos navegadores do Padrão dos Descobrimentos, as colunas do Cais das Colunas, a vista do Castelo e a descida pelas ruelas de Alfama, o Metro, quando só tinha duas linhas e as estações eram escuras e tinham outros nomes («Rotunda. Este comboio destina-se a Sete Rios.»).


Santos

Muitas vezes visitei cidades que me fizeram compreender o que atrai tantos turistas a Lisboa. Lisboa é uma cidade muito bonita, e esta Primavera esteve particularmente favorecida. As vacas deram um empurrãozinho, e lá acabei a calcorrear ruas onde há anos não passava, a sentir as solas de borracha a colarem-se ao chão, pegajoso das flores de jacarandá e das temperaturas médias de 30ºC. O calor e a máquina fotográfica em punho chegaram a fazer-me sentir em férias, numa qualquer outra cidade. Várias vezes dei por mim a pensar: «A última vez que estive nesta esquina, a fotografar este edifício, foi em Montreux. Ou em Zagreb, ou...».
E no meu imaginário iam-se misturando todas as cidades, que são cidades e têm tudo o que uma cidade precisa de ter, sobretudo turistas, que eu também sou e que me redescubro ao descobrir cidades na cidade onde nasci, e nas outras, onde vou renascendo.


Alfama a preparar-se para a noite de Santo António

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