Quadrados


Armazéns do Socorro, Rua de S. Lázaro, Lisboa

Vivi dez anos num 3º andar cujas janelas de trás davam para os quintais do quarteirão, um quadriculado de hortas, escadas de serviço, capoeiras, cães, árvores, flores, arrecadações, muros e gatos ao sol. Tive dez anos o privilégio do sossego e de acordar com o cantar do galo, no centro de uma cidade de cerca de 200 mil habitantes (em Janeiro, era mais o cio dos gatos a acordar os cães, que assarapantavam os patos, que espavoriam as galinhas, que sobressaltavam os pássaros e despertavam os galos, que acordavam a vizinhança furiosa). O todo que eu via de cima era cercado por prédios de 3 ou 4 andares, construídos aparentemente entre os anos 30 e 80. Uma excepção: uma casinha saloia, branca, com alpendre de telha à entrada e passarinhos nos beirais - para trás, um quintal fresco, com árvores, flores, uma capoeira, uma arrecadação, um cão, gatos espreguiçados em cima do muro e um poço, que fazia as minhas delícias em criança, quando, da janela da cozinha da avó, contemplava aquele conjunto bucólico.
No final dos anos 70, após a morte da dona da casa, o genro, engenheiro, ao que se dizia no bairro, resolveu aproveitar os cobres herdados e os amigos na câmara para fazer obras de remodelação e ampliação: uma cozinha moderna e, utilizando o declive do terreno, uma sala por baixo era o que se conseguia ver das traseiras, assim como o poço tapado e o pavimento de aparas de mármore (escaparam duas oliveiras, creio). Mas o que mais me chocou nem foi a brutalidade saliente daquela cozinha disforme, nem o verde que foi invadindo o mármore do quintal transformado em terraço, nem a lusalite que substituiu a telha no alpendre, que eu nem via da janela - o pior mesmo foram os azulejos de grandes florões azul cobalto que cobriram toda a casa. É que, devido ao tal declive do terreno, a casinha térrea ficava ao nível do 3º andar que eu habitei toda a década de 90, durante a qual, consequentemente, senti a minha cozinha emparedada por uma casa de banho.
Escusado será dizer que nunca mais vi com bons olhos aqueles revestimentos cerâmicos que, nos anos 70, vieram alegremente e em força substituir a pastilha, que, caindo progressivamente das paredes e em desuso, entra hoje nos interiores de design exclusivo.
Um dia, alguém me disse que há azulejos e azulejos e me ensinou a ver os remates e acabamentos, as cercaduras, os motivos e as cores que fazem a diferença. Mas a minha vida tomou outros rumos e os granitos, primeiro, e a cal branca e os rodapés amarelos, depois, criaram um novo enquadramento à minha volta. Os azulejos, para o bem e para o mal, ficaram esquecidos.
Até que, um dia, os quadrados da Rosa Pomar entraram no meu computador, através das suas belíssimas colecções de azulejos e mosaico hidráulico. E dei por mim a reparar nos revestimentos de parede e chão, sem conseguir fugir às tentações do disparo e do plágio. Tenho já uma colecçãozinha simpática, de que deixo aqui uma amostra.

Quatro paredes de azulejo, três na Rua de S. Lázaro, em Lisboa, uma na estação ferroviária do Entroncamento; mosaico hidráulico numa casa particular, em Portalegre, e na igreja de S. Francisco, em Alburquerque, Espanha

1 comentário:

Winterdarkness disse...

Acho que neste texto falas da cidade onde vivo e consigo visualizar as tuas descrições... Mto bom! Jokas